ABCXYZ

O que acontece quando as criatividades do escritor Sergio Rodrigues e do ilustrador Daniel Kondo se encontram numa brincadeira contínua que atravessa todo o nosso abecedário? Em primeiro lugar, uma farra. Um livro pra curtir de verdade.

Na linguagem, Rodrigues costura aliterações e assonâncias para cada letra, e com isso cria frases, imagens e ideias divertidas e inesperadas. Para entender a regra principal do jogo, basta espiar uma delas, quase ao léu, como a sequência da letra E: “Enquanto ela era eu, eu era ela: entendeu?”. Todas as palavras da página precisam começar com a letra E e fazer uma frase: aqui, na forma de uma quase charada que convida as leitoras e os leitores a pensar que identidade inesperada seria essa, entre “eu” e “ela”. Em outros momentos, o que vamos encontrar parecem verdadeiros trava-línguas, com pitadas de absurdo e boas gargalhadas. Cada página nasce e se desenvolve pelas possibilidades das letras, sempre muito vivas.

Em segundo lugar, Kondo trama um movimento singular das imagens, fazendo das mesmas letras um objeto visual para cada caso. Não é à toa que a fonte da tipografia é uma invenção nova que ele criou especialmente para o livro. Só que, neste caso, segue ainda mais longe: trabalha em cima da paleta cores de antigas gravuras japonesas, dando uma série de contrastes delicados que ampliam o efeito da linguagem. Vamos voltar à letra E, que ali podemos espiar bem como o texto de Rodrigues ganha ainda mais força: em parte, na oposição de apenas duas cores, o amarelo e o verde (que não se confundem com o verde-amarelo da bandeira nacional; em parte, na metade da frase vinda da direita para esquerda, de cabeça para baixo. Alguém até poderia perguntar: onde começa o texto? E onde termina? Ela ou eu? Eu ou ela?

Afinal, o que sai daí? Ora, no caso da letra E, nasce um lindo convívio de quase-contrários, uma descoberta certeira do convívio e da similaridade entre coisas diferentes. A vida mais profunda e forte dessa ínfima letra, quando ela une pessoas numa frase qualquer, como Eu E vocÊ.

O que sai então daí ? ABCXYZ, um livro que parece uma composição de poesia visual, e não mera junção de texto e imagem. Nas mãos de Rodrigues e Kondo, o texto é também som, e a imagem é sempre um texto. Tudo muito bem entrelaçado numa vida única que junta experimentos da poesia concreta brasileira (de figuras luminares como Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari) e da Oulipo (a "Oficina de Literatura Potencial", que teve fama entre os franceses, com nomes como François Queneau e George Pérec).

A farra, então, é muito refinada.

Mas venham tranquilos, venham com vontade, que é uma festa para todo mundo. Este livro levanta a bola da conversa, mas não cai na balela da presunção de gente metida. E essa delícia poderia ser resumida na letra J: “ Júlia joga jogo joia. Janaína joga junto”. É jogo certeiro, é drible na medida. Jogo de dois inventores, que nos convidam pra vir junto. É só chegar chegando.

Guilherme Gontijo Flores